Intimidades

Intimidades...



Ser terapeuta é um privilégio e uma arte, no sentido de poder testemunhar e acompanhar com cada cliente, o desabrochar de sua “obra” e se sentir parte disso ainda que como um facilitador que se utiliza não só de recursos técnicos e teóricos, mas também de sua sensibilidade, sua personalidade, enfim, seu ser naquela relação, para tocar o outro não só pelas palavras como também pelos sentidos, e observar para ver o que virá depois deste toque. É ajudar a desenrolar um novelo emaranhado e mostrar a possibilidade de se tecer coisas novas com toda aquela lã agora lisa e sem nós no sentido da integração daquela pessoa com a realidade em que vive; e poder apreciar isso é um privilégio.



Ser terapeuta é fomentar a criação e recriação por parte do cliente de maneira a melhorar sua forma de contato consigo mesmo e com o mundo. Mas isso não é absolutamente um caminho linear, limpo e fácil de ser seguido. É uma via de mão dupla: você toca e é tocado. É o toque, a presença, a problemática que o cliente traz consigo que faz com que, inúmeras vezes, o terapeuta precise olhar para si de alguma maneira que naquele momento não era “desejado”, olhar para algo que talvez não estivesse sendo percebido.



Portanto ser terapeuta tem a ver com algo íntimo, delicado, único; antes da intimidade do cliente, tem a ver com sua própria intimidade; entrar em contato, conhecendo sua própria intimidade, sendo íntimo de si mesmo, se olhando, se despindo, se examinando, se desbravando. Buscando crescimento e amadurecimento.



Estar na função de terapeuta é se saber também mexido, também confrontado com suas questões, suas dores, suas feridas. É preciso estar disposto... E esta disposição tem que ocorrer também no sentido da humildade para que se possa respeitar o tempo do cliente e não se sentir conhecedor do outro; não pressupor, não atropelar. Apenas acompanhar facilitando a caminhada do cliente, lidando com sua própria ignorância, trabalhando sua própria ansiedade, tendo paciência, sabendo que a experiência é do outro.



Por isso é preciso ter em mente que ainda que se mexa em nossas questões, nossa feridas e nosso equilíbrio emocional a todo instante no contato com o cliente, o compromisso primeiro estabelecido naquela relação é com ele, é dele o espaço e ele paga por isso. Ainda que nos vejamos modificados, transformados nesta relação- muito pela nossa auto-observação- é para a compreensão da situação com o cliente que somos obrigados também a nos trabalhar em terapia.



Ser terapeuta é ser também solitário porque o sigilo que nos é exigido, nos impede de desabafar de maneira informal sobre alguma questão que nos tenha mobilizado. É conviver com a incerteza, é tolerar a dúvida e é estar disposto a mudar totalmente de caminho junto com o cliente quando se percebe errando... É se saber limitado e, principalmente, se deixar perceber limitado no sentido da cura e da reparação. É aceitar o outro e não necessariamente, concordar com ele; o que a meu ver só ocorre ali naquele momento quando se dá o verdadeiro amor terapêutico que é a célula de toda essa relação.



O que me moveu e move até hoje na busca do exercício da profissão é um interesse genuíno com relação ao outro, uma vontade de compreendê-lo e um desejo de reparação sim; o que me faz ficar atenta para não cair na armadilha de tentar “resolver” o cliente. E isso faz com que a cada dia eu enfrente a angústia vinda da impotência e das limitações da profissão.



Muitos, olhando de fora, com certeza acham essa opção de vida descabida, desconfortável e até mesmo arriscada pelo fato de lidar com tantas situações limites, complicadas, extremas até. Mas acredito que o que mova qualquer terapeuta, independente de sua orientação teórica seja na realidade o amor pelo outro, pelo humano.



Um amor que possibilite a aceitação incondicional do cliente sem pressupostos ou pré-conceitos, no sentido de validar a existência daquela pessoa que veio ao seu encontro muitas vezes já tendo esgotado todas as outras tentativas de resolver seus conflitos.



Portanto partindo da confiança, fé e esperança no humano que existe dentro de cada terapeuta, recebemos aquela pessoa e partimos com ela numa caminhada muitas vezes árdua, dolorosa, difícil e arriscada para ambos, e em outras tantas, bela e aprazível para tentarmos encontrar seu “estar no mundo” no sentido da sua satisfação e felicidade.



Porém ser terapeuta é também lidar com a desconfiança e o desconhecimento. Existe toda uma aura de mistério acerca do que é o trabalho de um psicólogo na clínica e para que ele serve. Muitos pensam que a psicoterapia é exclusivamente para tratamento de doenças mentais ou então que procurar ajuda para a solução de seus problemas pessoais significa fraqueza. Às vezes é necessário esclarecimento... Lidar com pessoas que vêm o trabalho do terapeuta com descrença faz parte também de um dia-adia que , creio se aplica a todos que exercem essa profissão independente de linha teórica.



O terapeuta é aquele que procura criar um espaço favorável ao crescimento pessoal do cliente, proporcionando à ele intimidade consigo mesmo, estabelecendo diálogos construtivos, abrindo novos canais de comunicação, transformando padrões estereotipados de funcionamento, oferecendo portanto, uma grande oportunidade de compreender e mudar as formas com que aquele cliente faz contato com o mundo; e é aí que estão colocadas todas as nossas relações.



Desta maneira aquilo a que o terapeuta se propõe é fortalecer a capacidade de auto gerenciamento e auto-regulação do cliente que, através da tomada de consciência de si mesmo na medida da compreensão de seu funcionamento e dos fatos de sua vida, possa tomar para si a responsabilidade saudável pelo seu próprio crescimento, levando sempre em consideração suas potencialidades, capacidades, desejos.

Ser terapeuta é uma forma de ser no mundo com o outro. Não é trabalhar em função de resultados específicos nem se esconder atrás de uma teoria; também não é abandoná-la pois esse enfoque teórico possibilita perceber o outro enquanto cliente e perceber seu posicionamento diante de si mesmo, do mundo e do próprio terapeuta. Ser terapeuta só tem sentido enquanto um ser propiciador de antíteses, de mudanças. Quando o terapeuta se vê no lugar de portador da verdade , representante de ordens constituídas, ele passa a ser uma “autoridade” que determina o melhor ajuste para o cliente e nunca uma transformação.

Ser terapeuta é oferecer uma presença autêntica no vínculo com o cliente. E é esta relação que funciona como catalisador de processos de mudança necessários em sua vida.

Precisamos ocupar todos os papéis: como cliente, como profissional e como observador, e isso nos habilita a "sentir-nos em casa" em situações difíceis e podermos caminhar por terrenos inóspitos, cheios de sofrimento e problemas emocionais buscando encontrar um caminho de melhora junto com o cliente

Para ser terapeuta é preciso estar disponível para a vida, inclusive para sua própria.